30 janeiro 2009

Pandora

"There is hope, but not for us."

Franz Kafka: A Biography, Franz Kafka (dito para e escrito por Max Brod).

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"The Messiah will come only when he is no longer necessary; he will come only on the day after his arrival; he will come, not on the last day, but at the very last."

Parables and Paradoxes, Franz Kafka.

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"From a certain point onward there is no longer any turning back. That is the point that must be reached."

Aphorisms, Franz Kafka.

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O grande problema da esperança e da salvação é que na totalidade das vezes em que se apresentam são coisas completamente diferentes; da mesma maneira que normalmente são as pequenas coisas que nos pegam desprevinidos, são justamente as coisas que não esperamos que aconteçam que mudam o curso de um desastre: uma pessoa com quem nunca pudemos contar, uma idéia absurda, um pedestre no lugar certo, uma ligação, uma música, um semáforo, uma lembrança.

Me interesso justamente pelo dia seguinte a tudo isso, pela inevitável presteza com que a realidade desmonta nossas coleções de esperanças de futuro após o desespero ou a felicidade, pois é apenas o ponto-sem-retorno que nos obriga às maiores ações e aos piores fracassos, mas em cuja altura o band-aid já saiu e é muito tarde para esperar.

Que haja esperança, mas que não seja uma profissão.

A minha é um hobby.

O fundo da gaveta #5 (ou Cigarros)

Quando escreveram-me dizendo que estava mal afundei as mãos nos bolsos tateando por um isqueiro; não, não há cigarros, nunca houveram cigarros entre nós, e talvez fosse isso que eu alcançasse quase que inconscientemente: uma ausência, prender uma ausência entre os dedos como garantia de que não ficará mais nada depois que a curiosidade cessar, que não restará saudade, que não haverá fraqueza, que os cigarros serão só meus, meu pedaço amputado de lembrança que não pode ser levado embora.

Ríamos nas madrugadas, escorregando no chão encerado com meias brancas encardidas, bebíamos; os livros deixados no tapete eram rastros dos acessos repentinos da imaginação, folhas de orelhas ensebadas, músicas que nunca escutávamos por completo, a geladeira vazia, a tinta nos sofás; dividíamos a casa e o silêncio sem acordo, sem precisar explicar nada um ao outro, dividíamos tudo, havia esperança de que não há egoísmo entre irmãos, mas não haviam cigarros.

Esperavam alguma coisa, um sopro de solidariedade que justificasse qualquer investida, mas isso eu já não podia oferecer, embora ainda houvesse um querer saber, um estar à frente que não passaria sem uma pergunta de dentes cerrados, de mãos e bolsos e sussurros; sobrou muita curiosidade, a fome incomoda o orgulho que quer dizer que voltamos a rir, que entendemos a piada e estamos preparados pra continuar com a brincadeira, mas há também um vazio de perguntas de olhos baixos, de curiosidade que não se importa.

Éramos estranhos à rua, flores de estufa, contávamos as horas pelos seriados da TV, perdíamos muito tempo com o sono, com a lentidão das manhãs, com lembranças de mulheres distantes; mas sempre houve o que dizer, mesmo quando o silêncio inundava as poltronas sempre houve o que dizer, só não havia necessidade: ríamos com o silêncio.

Conheço pessoas demasiadamente boas, irritantemente virtuosas, pessoas que sempre me apontam uma saída mesmo quando todas as portas se recusaram a abrir, que prescrevem medicamentos mesmo quando o coração já não bate mais; amo suas virtudes, odeio sua compaixão, sua pena, sua solução ingênua para mais uma primavera dos tempos, pessoas que nunca precisaram de cigarros e que exigem que eu me livre de um isqueiro.

Talvez no fundo o problema fosse compartilhar de um mesmo apetite e saciá-lo de maneira completamente diferente, fosse o que fosse, tudo acaba com uma mulher; hoje ainda há o silêncio, mas há também a distância, hoje não há mais o que ser dito, o silêncio é uma necessidade, não dividimos mais uma casa, não compartilhamos mais o sangue, as manhãs tornaram-se breves e também breve é o tempo que essa lembrança passa desperta.

No meu bolso eu carrego um isqueiro, mas não há cigarros: essa é a ausência que eu guardei pra mim.