27 setembro 2010

Fome

Naqueles dias quando eu tinha mais irmãos do que amigos a casa era grande demais, lá estavam os cachorros, as árvores, a família, mas também havia todo aquele espaço entre eles, e o tempo durante o qual não estavam lá; eu sentia coisas cujos nomes eu não sabia, eu vivi uma adolescência do espírito com todas aquelas mudanças revoltosas e inevitáveis, descobri alguma coisa nascida do silêncio e da distância, uma coisa que hoje eu arrisco chamar de solidão.

Mas quando se é criança essas palavras todas não possuem significado, os sentimentos só estão por lá, espécies estranhas de fome, e eu me apegava a coisas que estavam ao alcance das mãos, o cabo de vassoura, o lençol branco - ou como eram então conhecidos: a espada e a armadura do cavaleiro, ou qualquer coisa assim que me facilitasse a luta contra tantos demônios invisíveis; os pobres cachorro: dragões, leões, sempre maiores que a própria vida.

Não sei se havia maldade, talvez as crianças se mantenham imunes por um tempo maior do que sou capaz de imaginar, mas os pequenos atos de rebeldia já estavam por lá, a tesoura e as roupas no varal, a água e as formigas, o fogo sempre fácil demais, e eu destruí alguns mundos nas tardes lentas antes do futebol só porquê a TV não me agradava, eu fugia dos alienígenas saídos diretamente da reportagem no jornal, mas logo o frio na barriga passava com o som do portão abrindo e do hospital ficando pra trás, mas trazendo sempre seu perfume discreto nos cabelos dos meus pais.

Hoje todo esse mundo me parece simples e a sua simplicidade é assustadora, o espaço demasiado entre o conforto da companhia e a ameaça da imaginação, o tempo que não se media pelos relógios, as horas que se prolongavam infinitamente, a ausência; mas essas coisas todas nunca estiveram por lá, eram só espécies estranhas de fome que eventualmente morriam, eram sentimentos sem nomes e sem donos que hoje eu tento abraçar como meus, mas sem saber direito se cresceram irreversivemente através dessa adolescência do espírito em cuja voz e o rosto não mais se reconhecem

Contudo, assim como hoje, quando se matava a fome a felicidade estava sempre à mesa.

24 setembro 2010

O fundo da gaveta #7 (Ou, bem, quem se importa)

Hoje não chove, mas poderia; minha mente está preparada para a chuva, para uma cortina gelada chocando-se contra as janelas, o vapor das xícaras, o arrastar dos chinelos, o nariz resmungando quando o ar é pouco, quando o espirro é úmido. Hoje não chove, mas poderia.

O cabo nas mãos, a panela no chão; alho, cebola e azeite extra virgem desenhando uma paisagem sobre o piso amarelado, um parafuso ainda rolando lentamente até sumir sob a bancada de mármore - um estalo confirma que deve ter se recostado à parede onde as mãos não alcançam sem os joelhos no chão -; uma mancha gorda crescendo nas meias brancas, os dedos que começam a sentir o que os olhos acompanham indignados, os ouvidos surdos recobrando seu controle mas vendo-se tomados por um som que não estava lá, as chamas azuis chiando com o azeite que borbulha, com a cebola que queima, com o gás que escapa.

Hoje não chove, mas poderia; alguma coisa que congelasse os ossos pra tornar o banho inevitável, alguma coisa que destruísse o conforto das pantufas, que levasse o cheiro de sono dos cabelos embora, que trouxesse a consciência de volta pra essa sala, pra essa cadeira, pra essas mãos sem bolsos. Hoje não chove, mas poderia.

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E não é que "choveu", só que com mais aspas do que água.

11 setembro 2010

Cidade grande

Uma multidão pode ser o lugar mais solitário do mundo, há sempre uma nuvem sobre nossas cabeças, a desconfiança, o medo, a violência, a pobreza que agride nossos olhos, aos poucos os outros se fundem em uma só coisa, essa massa disforme que não nos diz respeito, indiferença, cegueira voluntária, surdez seletiva, e tudo isso somos nós também, toda tentativa de relegar esse mundo só confirma a mais completa imersão em um estado de espírito coletivo de absoluta individualidade.

Sempre tive um certo orgulho de não fazer parte, uma daquelas ferramentas enferrujadas que nos garantem qualquer forma de conforto para o orgulho, aquele degrau que nos separa do mundo para podermos dizer com certeza que não fazemos parte desses números, que não compartilhamos uma fatia gorda de culpa nos rumos duvidosos pelos quais somos obrigados a seguir, como se não houvessem pernas para caminhar sozinho.

Mas de quando em quando a realidade alcança, paramos de sonhar por um segundo e o mundo já está à porta com notícias novas, com um espelho em mãos que por tanto tempo nos recusamos a encarar, e aí o mundo deixa de ser a tela da televisão, a manchete de jornal, e o mundo todo está logo ali refletido diante dos nossos olhos, e a nossa parcela de culpa é ensurdecedora, nossa ignorância de analfabetos, nosso rancor cangaceiro, nossa indiferença marginal, nossa pompa baronesca.

Talvez a terra seja culpada, talvez haja alguma coisa por baixo disso tudo; eu que sempre achei que esse selo original nos houvesse imprimido uma certa intransitividade, uma coisa que resistisse às forças do tempo, deixo a terra vermelha e os pastos do sangue em outra conjugação e me sujo com uma paleta nova, irreconhecínel, inominável; talvez a terra seja forte demais quando está sob nossos pés, talvez haja alguma força desconhecida que atraia a alma para outras direções, que nos deforme em qualquer sentido, uma gravidade moral que nos agarra e nos arrasta a padrões cada vez mais baixos, a planícies culturais cujos limites a imaginação não alcança, mas que estão perigosamente fendidas de abismos inimaginavelmente profundos.

Hoje eu sei que o nosso baú é pequeno, que a vida toda é escolher as coisas das quais estamos dispostos a abrir mão, que o nosso inventário é condicionado mas que as regras que seguimos estão camufladas sob uma inocência fantástica e que a liberdade também está por vezes escondida em trajes de inevitabilidade, com medo de dizer em voz alta que decidimos abrir mão de partes importantes de nossas vidas por razões que talvez sejam até justificáveis, mas não facilmente compreensíveis.

Eu falo muito sobre o tempo e sobre a terra, e cada vez que eu descubro uma peça nova dentro do meu baú eu entendo porque há um gosto amargo no fundo da garganta, porque há borboletas no meu estômago; contar histórias é uma maneira de aprender, e só através de tudo isso eu começo a ver por trás de todas as camuflagens da determinação e do livre-arbítrio, entender os efeitos da terra sobre o espírito, o efeito das ações nas pessoas, das pessoas nos sentimentos,
do mundo sobre mim.

E tudo isso talvez seja uma forma de pedir desculpas a mim mesmo, e falando em voz alta talvez outras pessoas me desculpem também.