27 março 2010

Cotidiano

A velha da padaria lavando a calçada, o céu nublado, o vento da madrugada ainda resmungando apesar da manhã, ponto cheio, ônibus vazio; do guarda-chuva eu lembrei, mas faltou o casaco, a toca quente a esconder as orelhas vermelhas, me encosto no muro, Scientia Kantiana, pancadão, fulano esteve por aqui, qualquer coisa assim que me cansa os olhos, os óculos engordurados e vontade nenhuma de tirar as mãos do bolso.

A cama ainda deve estar quente, e ela mais quente ainda, dormindo de mãos fechadas e janela aberta, os pés eu já não sei, bom, longe dos meus, longe de mim; eu aqui, nariz escorrendo, olhos apertados fingindo que me importo com o letreiro esfumaçado da condução, a velha da padaria molhando os meus pés, água gelada, vento também, e tudo me lembra ela, a cama vagarosamente abraçando nós dois, uma mão que tateia no escuro, a segurança, alguma coisa ali adiante, alguma coisa pra saber que está tudo bem, pro sono poder voltar sem medo.

Relógio na mão, hora e meia, ainda há tempo de voltar atrás, de largar tudo e voltar pra ela, beijar sua testa com carinho e dizer que eu nunca mais vou embora, me aconchegar no seu decote e sonhar com a música que bate dentro do peito; o letreiro denuncia, o corpo resistindo com todas as forças, os ossos enfraquecidos de saudade, mas uma voz me dizendo que vai ficar tudo bem, que a cama vai continuar quente, que os pés vão ficar mais próximos, que é pra sempre.

A gente volta, a gente sempre volta.

25 março 2010

Irmandade

"We are all brothers under the skin - and I, for one, would be willing to skin humanity to prove it."

Ayn Raid.

Sonhos

Sonhei com um acidente, ferro e fogo, gritos, confusão, família em agonia, morte e todas essas coisas; disseram para eu não me preocupar que quando é o sonho que nos diz, é exatamente isso que não vai acontecer, que estão todos protegidos, bom pressário, pomba branca no céu azul.

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Sonhei com o sucesso, sorrisos, felicidade sem reservas e a eternidade a se desenrolar como uma sinfonia, rostos, família, amor, pomba branca no céu azul; me disseram que é um sinal, que é a pomba, que é o céu me dizendo alguma coisa do futuro, oportunidades e porvir.

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Noite sem sonhos, sem pombas, mas de manhã o céu estava azul.

05 março 2010

São Paulo 40 graus

A chuva não durou muito, mas veio na hora certa, precisa, como um compromisso de amor antigo cercado de todos os seus rituais inabaláveis, a chuva chegou sem anúncio e sem nuvens escuras em meio a um sol de rachar, pedestres caminhando aos pulinhos no súbido desespero de meias e ternos molhados, mas a coisa toda foi só uma visita rápida, guarda-chuvas em punho mas nenhuma dignidade em abrí-los diante daquela timidez, o asfalto fumegando, o vapor cozinhando as canelas dos mendigos e dos atletas e ainda assim uma esperança enorme no ar.

O sol lá de fora é o mesmo aqui de dentro, as cortinas todas como peneiras idiotas, as janelas escancaradas e nenhuma brisa através desse pano todo, só o sol, como ela fosse nada, como fosse o vidro que eu fiz questão que não estivesse lá, e esse calor esquenta também os temperamentos, a paciência escorre pelos meus joelhos, ou talvez seja só o suor, mas há toda uma atividade de músculos e nervos e dentes que se debatem e rangem atirados no sofá, as costas coladas no couro, a TV que não ajuda, os livros que não seduzem, o banho quente demais.

Apesar do suor é uma coisa assim nova, assim boa estar por essas lados do mundo, conhecendo um lado da cidade que passava desapercebido, uma face bonita e suada que esconde essas pequenas coisas que nos faltam o ano todo, aquele restaurante vazio, o trânsito dando trégua, o depertador desligado, a casa com cheiro de casa.

A minha paciência ainda está escorrendo pelos joelhos, ou talvez seja só o suor, mas com essa música eu sempre consigo um pouco mais, e com aquela foto eu sempre consigo um sorriso, e com um telefonema eu sempre consigo um suspiro, e no final de um dia desses, de um dia quente desses, eu também acabo ficando quentinho por dentro.