25 novembro 2010

Pêlos e penas

Uma idéia entrou voando pela janela do meu quarto
Batendo as asas já sem força,
Pousou sobre a cama já quase em sono profundo,
Minhas idéias se agitaram,
Pêlos eriçados,
Tive que contê-las de unhas enterradas no pescoço,
Acalmá-las com palavras doces,
Repreendê-las com palavras duras,
A idéia inocente alheia ao perigo,
Indefesa,
Adormecida,
Tomei conta dela,
Lhe trouxe água ao bico,
Calor às asas,
Tranquilidade ao sono,
A idéia ganhou força,
Cresceu rápido,
Passou a sentir-se em casa
Entre irmãos,
Mais cedo do que se pensava esquecera de onde veio,
Pra onde ia.
Uma idéia entrou pela janela do meu quarto,
Pêlos e penas eriçadas.

30 outubro 2010

Sábado de manhã

Só porque sábado de manhã ganhou um novo significado não quer dizer que ainda não haja esperança para o final de semana.

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Amanhã não vai haver sossego,
Só suor,
Talvez sangue, mas com certeza suor,
E então felicidade
No esquecimento dos sentidos,
Sentidos sem sentido algum.

05 outubro 2010

Peach plum pear



I'm a sensitive bore
And you seem markedly more
And i'm oozing suprise

But it's late in the day
And you're well on your way
What was golden went gray
And i'm suddenly shy

And the gathering floozies
Afford to be choosy
And all sneezing darkly
In the dimming divide

And i have read the right books
To interpret your looks
But you were knocking me down
With the palm of your eye

Go; na na na na na na na na na na
Na na na na na na na na na na
Na na na na na na na na

This was unlike the story
It was written to be
I was riding its back
When it used to ride me

And we were galloping manic
To the mouth of the source
We were swallowing panic
In the face of its force

And I was blue
I was blue
And unwell
Made me bold like a horse

And; na na na na na na na na na na
Na na na na na na na na na na
Na na na na na na na na

Now it's done
Watch it go
And you've changed so

Water run from the snow

Am I so dear?
Do I run rare?
And you've changed
So

Peach, plum, pear
Peach, plum

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Essa voz tem a capacidade incrível de me incomodar de uma maneira encantadora, naquele limite tênue entre o exótico e o insuportável.

Mas me admira o queixo erguido de quem canta como é e não como todos gostariam que fosse.

Joanna Newsom não é pra todos, e eu acho que ela nem se importa.

01 outubro 2010

Quase

Às vezes a cidade nos presenteia com momentos tão profundamentes reais, tão fundamentalmente humanos, que a parcela da nossa alma que é mais sensibilizada é justamente aquela que não se dá com palavras, mas que sabe falar à sua maneira.

É quase fome, é quase dor, são quase lágrimas, é quase tristeza, é quase pena, é quase piedade, é quase revolta, é quase indiferença, é quase uma palavra.

É quase tanta coisa que acaba não sendo nada.

27 setembro 2010

Fome

Naqueles dias quando eu tinha mais irmãos do que amigos a casa era grande demais, lá estavam os cachorros, as árvores, a família, mas também havia todo aquele espaço entre eles, e o tempo durante o qual não estavam lá; eu sentia coisas cujos nomes eu não sabia, eu vivi uma adolescência do espírito com todas aquelas mudanças revoltosas e inevitáveis, descobri alguma coisa nascida do silêncio e da distância, uma coisa que hoje eu arrisco chamar de solidão.

Mas quando se é criança essas palavras todas não possuem significado, os sentimentos só estão por lá, espécies estranhas de fome, e eu me apegava a coisas que estavam ao alcance das mãos, o cabo de vassoura, o lençol branco - ou como eram então conhecidos: a espada e a armadura do cavaleiro, ou qualquer coisa assim que me facilitasse a luta contra tantos demônios invisíveis; os pobres cachorro: dragões, leões, sempre maiores que a própria vida.

Não sei se havia maldade, talvez as crianças se mantenham imunes por um tempo maior do que sou capaz de imaginar, mas os pequenos atos de rebeldia já estavam por lá, a tesoura e as roupas no varal, a água e as formigas, o fogo sempre fácil demais, e eu destruí alguns mundos nas tardes lentas antes do futebol só porquê a TV não me agradava, eu fugia dos alienígenas saídos diretamente da reportagem no jornal, mas logo o frio na barriga passava com o som do portão abrindo e do hospital ficando pra trás, mas trazendo sempre seu perfume discreto nos cabelos dos meus pais.

Hoje todo esse mundo me parece simples e a sua simplicidade é assustadora, o espaço demasiado entre o conforto da companhia e a ameaça da imaginação, o tempo que não se media pelos relógios, as horas que se prolongavam infinitamente, a ausência; mas essas coisas todas nunca estiveram por lá, eram só espécies estranhas de fome que eventualmente morriam, eram sentimentos sem nomes e sem donos que hoje eu tento abraçar como meus, mas sem saber direito se cresceram irreversivemente através dessa adolescência do espírito em cuja voz e o rosto não mais se reconhecem

Contudo, assim como hoje, quando se matava a fome a felicidade estava sempre à mesa.

24 setembro 2010

O fundo da gaveta #7 (Ou, bem, quem se importa)

Hoje não chove, mas poderia; minha mente está preparada para a chuva, para uma cortina gelada chocando-se contra as janelas, o vapor das xícaras, o arrastar dos chinelos, o nariz resmungando quando o ar é pouco, quando o espirro é úmido. Hoje não chove, mas poderia.

O cabo nas mãos, a panela no chão; alho, cebola e azeite extra virgem desenhando uma paisagem sobre o piso amarelado, um parafuso ainda rolando lentamente até sumir sob a bancada de mármore - um estalo confirma que deve ter se recostado à parede onde as mãos não alcançam sem os joelhos no chão -; uma mancha gorda crescendo nas meias brancas, os dedos que começam a sentir o que os olhos acompanham indignados, os ouvidos surdos recobrando seu controle mas vendo-se tomados por um som que não estava lá, as chamas azuis chiando com o azeite que borbulha, com a cebola que queima, com o gás que escapa.

Hoje não chove, mas poderia; alguma coisa que congelasse os ossos pra tornar o banho inevitável, alguma coisa que destruísse o conforto das pantufas, que levasse o cheiro de sono dos cabelos embora, que trouxesse a consciência de volta pra essa sala, pra essa cadeira, pra essas mãos sem bolsos. Hoje não chove, mas poderia.

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E não é que "choveu", só que com mais aspas do que água.

11 setembro 2010

Cidade grande

Uma multidão pode ser o lugar mais solitário do mundo, há sempre uma nuvem sobre nossas cabeças, a desconfiança, o medo, a violência, a pobreza que agride nossos olhos, aos poucos os outros se fundem em uma só coisa, essa massa disforme que não nos diz respeito, indiferença, cegueira voluntária, surdez seletiva, e tudo isso somos nós também, toda tentativa de relegar esse mundo só confirma a mais completa imersão em um estado de espírito coletivo de absoluta individualidade.

Sempre tive um certo orgulho de não fazer parte, uma daquelas ferramentas enferrujadas que nos garantem qualquer forma de conforto para o orgulho, aquele degrau que nos separa do mundo para podermos dizer com certeza que não fazemos parte desses números, que não compartilhamos uma fatia gorda de culpa nos rumos duvidosos pelos quais somos obrigados a seguir, como se não houvessem pernas para caminhar sozinho.

Mas de quando em quando a realidade alcança, paramos de sonhar por um segundo e o mundo já está à porta com notícias novas, com um espelho em mãos que por tanto tempo nos recusamos a encarar, e aí o mundo deixa de ser a tela da televisão, a manchete de jornal, e o mundo todo está logo ali refletido diante dos nossos olhos, e a nossa parcela de culpa é ensurdecedora, nossa ignorância de analfabetos, nosso rancor cangaceiro, nossa indiferença marginal, nossa pompa baronesca.

Talvez a terra seja culpada, talvez haja alguma coisa por baixo disso tudo; eu que sempre achei que esse selo original nos houvesse imprimido uma certa intransitividade, uma coisa que resistisse às forças do tempo, deixo a terra vermelha e os pastos do sangue em outra conjugação e me sujo com uma paleta nova, irreconhecínel, inominável; talvez a terra seja forte demais quando está sob nossos pés, talvez haja alguma força desconhecida que atraia a alma para outras direções, que nos deforme em qualquer sentido, uma gravidade moral que nos agarra e nos arrasta a padrões cada vez mais baixos, a planícies culturais cujos limites a imaginação não alcança, mas que estão perigosamente fendidas de abismos inimaginavelmente profundos.

Hoje eu sei que o nosso baú é pequeno, que a vida toda é escolher as coisas das quais estamos dispostos a abrir mão, que o nosso inventário é condicionado mas que as regras que seguimos estão camufladas sob uma inocência fantástica e que a liberdade também está por vezes escondida em trajes de inevitabilidade, com medo de dizer em voz alta que decidimos abrir mão de partes importantes de nossas vidas por razões que talvez sejam até justificáveis, mas não facilmente compreensíveis.

Eu falo muito sobre o tempo e sobre a terra, e cada vez que eu descubro uma peça nova dentro do meu baú eu entendo porque há um gosto amargo no fundo da garganta, porque há borboletas no meu estômago; contar histórias é uma maneira de aprender, e só através de tudo isso eu começo a ver por trás de todas as camuflagens da determinação e do livre-arbítrio, entender os efeitos da terra sobre o espírito, o efeito das ações nas pessoas, das pessoas nos sentimentos,
do mundo sobre mim.

E tudo isso talvez seja uma forma de pedir desculpas a mim mesmo, e falando em voz alta talvez outras pessoas me desculpem também.

16 julho 2010

Nem com dez

"Uma vez topamos com um bando de peregrinos estúpidos lá pros lados do Llano e o velho que era o chefe deles foi logo falando em holandês como se a gente estivesse no país dos holandeses e o juiz respondeu sem nem piscar. Glancon quase caiu do cavalo. A gente nunca tinha ouvido ele falar assim. Quando nos perguntamos onde aprendeu sabe o que ele disse?

O que ele disse?

Disse que com um holandês

O ex-padre cuspiu. Eu não aprendia nem com dez holandeses. E você?"

Meridiano de Sangue, Cormac McCarthy.


Me lembrei de um sonho - que nem é meu, mas já me falta na memória a casa de onde saiu - no qual pessoas discutiam em holandês, e lá estava eu a apontar os erros das inflexões, as brechas nas cadeias causais e coisa e tal; acordei triste com a certeza de que sou mais inteligente quando sonho.

14 julho 2010

Desses homens

Sou desses homens que não choram em cena, mais pra Woody do que Penn, desses homens criados com mertiolate e ovos no café da manhã, homens que usam canetas e não se importam se a borracha não pode consolar, homens que dormem sem pijamas com a roupa do dia já quente pro dia seguinte, sou um desses homens que tem ossos duros e canelas afiadas a lascar as canelas das mesas, sou desses homens que não tem gatos, homens com histórias de coisas distantes e outros mundos de fantasia, rudes, barbudos, de olhos baços e lábios ressecados, desses homens sem pressa e de caminhar pesado, de pés sempre nos mesmos sapatos.

Sou um desses homens que não choram em cena, porque é no choro que a cena acaba, sem fôlego pra mais nada além da vergonha, além do ensaiar impotente de qualquer coisa que nem sei; desses homens criados com mertiolate no joelho e beijos de mãe na testa, de ovos cozidos em xícaras de café floridas; sou desses homens que usam canetas em cartas de amor, porque o amor é uma coisa que borracha nenhuma apaga; sou desses homens que dormem sem pijamas na frente da TV, escutando música, cheio de sonhos e carinhos; sou desses homens que tem ossos duros e canelas afiadas, deitado de meias de lã me esfregando nos pés macios dela; sou desses homens que ainda não tem gatos, mas que já tem nomes e vontades guardadas no bolso; sou desses homens com histórias de coisas distantes, de cidades de infância, rudes por serem Homens, barbudos pelo sangue, de olhos baços e lábios ressecados nessa madrugada profunda sob as cobertas a dividir histórias e o frio; sou desses homens sem pressa e de caminhar pesado, meio sem ter pra onde ir, meio não querendo ir pra lugar nenhum, de pés sempre nos mesmos sapatos - as pantufas dela que ficaram pra trás.

04 maio 2010

A bruxa

Uma bruxa entrou pelas cortinas fechadas,
Me pediu ingredientes antigos e sangue fresco,
Eu disse que não tinha muito o que oferecer,
Disse que tinha medo e saudade,
Disse que tinha amor e esperança,
A bruxa me pediu liberdade, me pediu inconsequência,
Eu disse que esses ingredientes faltavam a todos,
A bruxa me disse que era velha, que era rainha,
Me disse que viu o pecado nascer,
Que viu a força irrefreável dos homens no solstício dos tempos,
A bruxa me disse que ela era mais velha que o bem e o mal,
Que não conhecia os pormenores do certo e o errado,
Que era uma força da natureza guiada pelas marés do mundo,
Sem certo, sem errado,
Na crua violência e justiça da inocência,
A bruxa sacudiu a terra e rachou os céus,
Ela me pediu o coração,
Lhe ofereci minhas intenções,
Ela as recusou como se fossem vinho azedo,
Me disse que não queria propósitos, queria possibilidades,
E esperanças?
Só as não sonhadas, só aquelas que corriam soltas pelas estepes do futuro,
Perguntei-lhe o nome,
Chamou-me ousado, ferino,
Homens sempre nomeando as coisas,
Amarrando tudo pelas palavras no desespero tolo de controlar o que não conhecem,
Perguntei-lhe quem era,
O todo, a canção, a noite, aquilo que foge do alcance das palavras,
Eu disse que não tinha nada a oferecer
A bruxa me olhou sem olhos, me tocou sem mãos,
Ela me disse que ainda sou pouco, que ainda somos pouco,
Que agora entendia que somos assim frágeis,
Assim tolos,
Que fazemos pouco em existir,
Que não há nada que nos possa tirar sem que viremos nada,
Sem que sejamos conjugados em um tempo fora do tempo,
Lhe pedi desculpas,
A bruxa disse que isso podia me dar,
Ela me pediu tempo,
Paciência para que as coisas das estepes do futuro possam chegar,
Que elas sempre chegam na hora,
Hora que não é certa nem errada,
E eu disse que isso podia lhe dar.

24 abril 2010

Memórias inventadas #3 ( ou O forte)

Chovia sempre, luz azul através das cortinas esticadas, a grama que despontava mesmo através da lona grossa coçando nossos pés encardidos, todos aqueles brinquedos espalhados, peças minúsculas que se enterravam na pele descuidada, o silêncio das palavras mas toda uma sinfonia de vento e trovões e ainda assim uma segurança enorme, um forte dentro do forte, milhões de paredes ao nosso redor; invencíveis, éramos invencíveis.

A tenda nunca ficava no mesmo lugar, os buracos recheados de ossos que os cães cavavam no escuro, os tijolos da construção, as mudas de jabuticaba, um tabuleiro que se movia contantemente no qual a tenda era sempre um corpo estranho que se espremia em meio ao verde escuro, um forte azul claro que brilhava mesmo sem luz, que vagarosamente afundava na terra dos dias que passávamos lá dentro esquecendo das horas, o forte que sempre que ia embora deixava uma cicatriz na terra, uma sombra tardia e desbotada onde o sol não alcançava.

Sol baixo, uniformes ainda no corpo e o forte sempre na cabeça, a lona azul povoada de heróis, alguns desbotados, outros feridos, histórias impossíveis que aconteciam incessantemente, por vezes o tédio, risadas intermitentes, segredos; a segurança traz uma liberdade inesperada, mas ainda assim falávamos baixo como se as cortinas nos pudessem escutar, tabu, a menina mais bonita, coisas todas de uma inocência sem igual, invencíveis, sempre invencíveis.

Noite chegava tarde, banho, janta, arrastados pelas mãos ou pelo nariz com a promessa de um banquete, mas lá fora o mundo era outro, sem espaço para o silêncio, algumas responsabilidades, dividíamos o quarto, o abajur, mas cá não havia forte, não havia nada, existíamos em uma frequência diferente que eu nem saberia explicar, um súbito resguardar de um mundo que temíamos perder sem mesmo saber se existia.

A chuva venceu, a lona cedeu aos poucos, o calor e o frio incessantes, os anos, o plástico barato, o alumínio envergado; nos esquecemos do forte, enterramos um mundo todo no fundo do peito como fosse nada, menos tempo para o silêncio, mais responsabilidades, inveja, mentira, uma vida toda pela frente e uma incompatibilidade ensurdecedora que vagarosamente deixou uma cicatriz na memória, uma sombra tardia e desbotada onde nem o amor pôde alcançar.

Não somos mais invencíveis; eu, pelo menos, aprendi que o forte era uma prisão.

27 março 2010

Cotidiano

A velha da padaria lavando a calçada, o céu nublado, o vento da madrugada ainda resmungando apesar da manhã, ponto cheio, ônibus vazio; do guarda-chuva eu lembrei, mas faltou o casaco, a toca quente a esconder as orelhas vermelhas, me encosto no muro, Scientia Kantiana, pancadão, fulano esteve por aqui, qualquer coisa assim que me cansa os olhos, os óculos engordurados e vontade nenhuma de tirar as mãos do bolso.

A cama ainda deve estar quente, e ela mais quente ainda, dormindo de mãos fechadas e janela aberta, os pés eu já não sei, bom, longe dos meus, longe de mim; eu aqui, nariz escorrendo, olhos apertados fingindo que me importo com o letreiro esfumaçado da condução, a velha da padaria molhando os meus pés, água gelada, vento também, e tudo me lembra ela, a cama vagarosamente abraçando nós dois, uma mão que tateia no escuro, a segurança, alguma coisa ali adiante, alguma coisa pra saber que está tudo bem, pro sono poder voltar sem medo.

Relógio na mão, hora e meia, ainda há tempo de voltar atrás, de largar tudo e voltar pra ela, beijar sua testa com carinho e dizer que eu nunca mais vou embora, me aconchegar no seu decote e sonhar com a música que bate dentro do peito; o letreiro denuncia, o corpo resistindo com todas as forças, os ossos enfraquecidos de saudade, mas uma voz me dizendo que vai ficar tudo bem, que a cama vai continuar quente, que os pés vão ficar mais próximos, que é pra sempre.

A gente volta, a gente sempre volta.

25 março 2010

Irmandade

"We are all brothers under the skin - and I, for one, would be willing to skin humanity to prove it."

Ayn Raid.

Sonhos

Sonhei com um acidente, ferro e fogo, gritos, confusão, família em agonia, morte e todas essas coisas; disseram para eu não me preocupar que quando é o sonho que nos diz, é exatamente isso que não vai acontecer, que estão todos protegidos, bom pressário, pomba branca no céu azul.

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Sonhei com o sucesso, sorrisos, felicidade sem reservas e a eternidade a se desenrolar como uma sinfonia, rostos, família, amor, pomba branca no céu azul; me disseram que é um sinal, que é a pomba, que é o céu me dizendo alguma coisa do futuro, oportunidades e porvir.

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Noite sem sonhos, sem pombas, mas de manhã o céu estava azul.

05 março 2010

São Paulo 40 graus

A chuva não durou muito, mas veio na hora certa, precisa, como um compromisso de amor antigo cercado de todos os seus rituais inabaláveis, a chuva chegou sem anúncio e sem nuvens escuras em meio a um sol de rachar, pedestres caminhando aos pulinhos no súbido desespero de meias e ternos molhados, mas a coisa toda foi só uma visita rápida, guarda-chuvas em punho mas nenhuma dignidade em abrí-los diante daquela timidez, o asfalto fumegando, o vapor cozinhando as canelas dos mendigos e dos atletas e ainda assim uma esperança enorme no ar.

O sol lá de fora é o mesmo aqui de dentro, as cortinas todas como peneiras idiotas, as janelas escancaradas e nenhuma brisa através desse pano todo, só o sol, como ela fosse nada, como fosse o vidro que eu fiz questão que não estivesse lá, e esse calor esquenta também os temperamentos, a paciência escorre pelos meus joelhos, ou talvez seja só o suor, mas há toda uma atividade de músculos e nervos e dentes que se debatem e rangem atirados no sofá, as costas coladas no couro, a TV que não ajuda, os livros que não seduzem, o banho quente demais.

Apesar do suor é uma coisa assim nova, assim boa estar por essas lados do mundo, conhecendo um lado da cidade que passava desapercebido, uma face bonita e suada que esconde essas pequenas coisas que nos faltam o ano todo, aquele restaurante vazio, o trânsito dando trégua, o depertador desligado, a casa com cheiro de casa.

A minha paciência ainda está escorrendo pelos joelhos, ou talvez seja só o suor, mas com essa música eu sempre consigo um pouco mais, e com aquela foto eu sempre consigo um sorriso, e com um telefonema eu sempre consigo um suspiro, e no final de um dia desses, de um dia quente desses, eu também acabo ficando quentinho por dentro.

24 fevereiro 2010

A Revolução de Maio

É lugar comum toda essa pompa dos tempos passados, a certeza de que perdemos alguma coisa irrecuperável ao longo dos anos, uma certa capacidade de ter capacidades irrevogáveis e mais fortes do que qualquer lâmina que nos colocassem corpo a dentro, toda geração torna-se a última, o mais heróico Alamo a sustentar as virtudes mais divinas de um povo tão humano que pouco de humanidade tem.

Hoje um velho me disse que os tempos mudaram, que os vermelhinhos já se acovardaram há muito, assim mesmo, vermelhinhos, sem Socialismo Real e sem nada, ele me disse que esteve presente durante a Revolução de Maio, adendo, "da qual você nem sequer ouviu falar", e que já não pode mais ser enganado, que já pagou o preço da idade e soube muito bem colher os seus frutos, que eu ainda sou novo, que tenho muito a aprender.

Um velho tucano é só um homem, é só uma ave procurando um bando que não sabe bem onde está, é uma criatura ameaçada por uma vida, por um tempo, por uma país que talvez não sejam mais seus, é um animal de bico duro e língua afiada e não mede palavras, que não se importa com estranhos, que sabe com a mesma certeza de que existe que a vida não é mais uma surpresa, que a vida pra valer já se acabou ali atrás nos velhos tempos, no velho Alamo, e que agora é tudo uma encenação, uma peça de crianças e papier maché.

"Da qual você nem sequer ouviu falar."

São poucos os momentos de forno à lenha e luz de velas que nos permitem sentar sem preocupações, escutar nossos avós desenrolarem lembranças de um mundo totalmente novo e ainda assim empoeirado, a fila na padaria, os cruzados novos, a banca do gato preto, e fica um sentimento de criança com borboletas nas mãos, com medo de respirar forte demais e destruir uma coisa que pouco faz por existir, uma coisa assim da qual eu nem sequer ouvi falar.

Mas eu também já vi suspiros e arrepios vindos da cadeira de balanço, uma coisa besta que encanta e seduz, a nova musa do carnaval, os planetas todos ali na televisão, um mundo todo que se sobrepõe ao nosso permeado de diários eletrônicos e fotos e mensagens instantâneas, as possibilidades todas de saudade amenizada com o toque de um botão, eu vi feitos que se imaginavam impossíveis serem superados um após o outro como fossem nada, e eu assisti a tudo isso com uma naturalidade de quem se sente em casa.

Se as pessoas realmente podem ser de outro tempo, se o vir a ser realmente nos impõe um selo irrevogável que nos condena a um estado de coisas aquém das coisas do mundo, do hoje, se ele nos obriga e condiciona a uma mentalidade temporalmente cristalizada, o que existe não é uma vida, é um museu.

O mundo continua, e há tantas coisas das quais ainda nem ouvimos falar.

19 janeiro 2010

Histórias

Certa vez Barry McGuigan, boxeador profissional, disse:

"I'm a fighter because I can't be a poet. I can't tell stories."

Eu comecei a lutar no momento em que parei de contar histórias.

13 janeiro 2010

Blecaute

OK, agora vai.

Estou voltando para a civilização depois de um bom período de reclusão na caverninha, uma certa antipatia latente de estava bombando aqui por baixo e uma mãozinha de um monitor vagabundo foram mais do que o suficiente pra baixar as cortinas, mas agora as coisas parecem mais suaves, uma nova disposição de férias da qual eu quase já havia me esquecido, uma vontade de louca de correr metaforicamente por aí e de literalmente comer tudo que estiver pelo caminho, porque acima da saudade o que um heremita mais sente é fome.

Livrinho novo, calorzinho do caralho, cuecas novas e PAAANNNZ, tudo engatilhado pra tirar a poeira, o que inevitavelmente me lembra do blecaute de uns tempos atrás e todo esse desgaste por conta de uma super dependência das redes de intregração social, os banhos gelados, as velas acesas, todo esse pânico e cientistas sociais correndo pelas ruas ensandecidos com todas suas teorias da ruína do novo mundo, mas quando a coisa toda parecia mais inevitável foi que descobrimos todas as possibilidades que se escondem na simplicidade das nossas necessidades básicas, e aí o céu todo ficou mais claro, as cartas mais românticas, as pessoas mais presentes.

O meu blecaute acabou.