24 abril 2010

Memórias inventadas #3 ( ou O forte)

Chovia sempre, luz azul através das cortinas esticadas, a grama que despontava mesmo através da lona grossa coçando nossos pés encardidos, todos aqueles brinquedos espalhados, peças minúsculas que se enterravam na pele descuidada, o silêncio das palavras mas toda uma sinfonia de vento e trovões e ainda assim uma segurança enorme, um forte dentro do forte, milhões de paredes ao nosso redor; invencíveis, éramos invencíveis.

A tenda nunca ficava no mesmo lugar, os buracos recheados de ossos que os cães cavavam no escuro, os tijolos da construção, as mudas de jabuticaba, um tabuleiro que se movia contantemente no qual a tenda era sempre um corpo estranho que se espremia em meio ao verde escuro, um forte azul claro que brilhava mesmo sem luz, que vagarosamente afundava na terra dos dias que passávamos lá dentro esquecendo das horas, o forte que sempre que ia embora deixava uma cicatriz na terra, uma sombra tardia e desbotada onde o sol não alcançava.

Sol baixo, uniformes ainda no corpo e o forte sempre na cabeça, a lona azul povoada de heróis, alguns desbotados, outros feridos, histórias impossíveis que aconteciam incessantemente, por vezes o tédio, risadas intermitentes, segredos; a segurança traz uma liberdade inesperada, mas ainda assim falávamos baixo como se as cortinas nos pudessem escutar, tabu, a menina mais bonita, coisas todas de uma inocência sem igual, invencíveis, sempre invencíveis.

Noite chegava tarde, banho, janta, arrastados pelas mãos ou pelo nariz com a promessa de um banquete, mas lá fora o mundo era outro, sem espaço para o silêncio, algumas responsabilidades, dividíamos o quarto, o abajur, mas cá não havia forte, não havia nada, existíamos em uma frequência diferente que eu nem saberia explicar, um súbito resguardar de um mundo que temíamos perder sem mesmo saber se existia.

A chuva venceu, a lona cedeu aos poucos, o calor e o frio incessantes, os anos, o plástico barato, o alumínio envergado; nos esquecemos do forte, enterramos um mundo todo no fundo do peito como fosse nada, menos tempo para o silêncio, mais responsabilidades, inveja, mentira, uma vida toda pela frente e uma incompatibilidade ensurdecedora que vagarosamente deixou uma cicatriz na memória, uma sombra tardia e desbotada onde nem o amor pôde alcançar.

Não somos mais invencíveis; eu, pelo menos, aprendi que o forte era uma prisão.

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