27 março 2010

Cotidiano

A velha da padaria lavando a calçada, o céu nublado, o vento da madrugada ainda resmungando apesar da manhã, ponto cheio, ônibus vazio; do guarda-chuva eu lembrei, mas faltou o casaco, a toca quente a esconder as orelhas vermelhas, me encosto no muro, Scientia Kantiana, pancadão, fulano esteve por aqui, qualquer coisa assim que me cansa os olhos, os óculos engordurados e vontade nenhuma de tirar as mãos do bolso.

A cama ainda deve estar quente, e ela mais quente ainda, dormindo de mãos fechadas e janela aberta, os pés eu já não sei, bom, longe dos meus, longe de mim; eu aqui, nariz escorrendo, olhos apertados fingindo que me importo com o letreiro esfumaçado da condução, a velha da padaria molhando os meus pés, água gelada, vento também, e tudo me lembra ela, a cama vagarosamente abraçando nós dois, uma mão que tateia no escuro, a segurança, alguma coisa ali adiante, alguma coisa pra saber que está tudo bem, pro sono poder voltar sem medo.

Relógio na mão, hora e meia, ainda há tempo de voltar atrás, de largar tudo e voltar pra ela, beijar sua testa com carinho e dizer que eu nunca mais vou embora, me aconchegar no seu decote e sonhar com a música que bate dentro do peito; o letreiro denuncia, o corpo resistindo com todas as forças, os ossos enfraquecidos de saudade, mas uma voz me dizendo que vai ficar tudo bem, que a cama vai continuar quente, que os pés vão ficar mais próximos, que é pra sempre.

A gente volta, a gente sempre volta.

Nenhum comentário: