24 setembro 2010

O fundo da gaveta #7 (Ou, bem, quem se importa)

Hoje não chove, mas poderia; minha mente está preparada para a chuva, para uma cortina gelada chocando-se contra as janelas, o vapor das xícaras, o arrastar dos chinelos, o nariz resmungando quando o ar é pouco, quando o espirro é úmido. Hoje não chove, mas poderia.

O cabo nas mãos, a panela no chão; alho, cebola e azeite extra virgem desenhando uma paisagem sobre o piso amarelado, um parafuso ainda rolando lentamente até sumir sob a bancada de mármore - um estalo confirma que deve ter se recostado à parede onde as mãos não alcançam sem os joelhos no chão -; uma mancha gorda crescendo nas meias brancas, os dedos que começam a sentir o que os olhos acompanham indignados, os ouvidos surdos recobrando seu controle mas vendo-se tomados por um som que não estava lá, as chamas azuis chiando com o azeite que borbulha, com a cebola que queima, com o gás que escapa.

Hoje não chove, mas poderia; alguma coisa que congelasse os ossos pra tornar o banho inevitável, alguma coisa que destruísse o conforto das pantufas, que levasse o cheiro de sono dos cabelos embora, que trouxesse a consciência de volta pra essa sala, pra essa cadeira, pra essas mãos sem bolsos. Hoje não chove, mas poderia.

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E não é que "choveu", só que com mais aspas do que água.

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