11 setembro 2010

Cidade grande

Uma multidão pode ser o lugar mais solitário do mundo, há sempre uma nuvem sobre nossas cabeças, a desconfiança, o medo, a violência, a pobreza que agride nossos olhos, aos poucos os outros se fundem em uma só coisa, essa massa disforme que não nos diz respeito, indiferença, cegueira voluntária, surdez seletiva, e tudo isso somos nós também, toda tentativa de relegar esse mundo só confirma a mais completa imersão em um estado de espírito coletivo de absoluta individualidade.

Sempre tive um certo orgulho de não fazer parte, uma daquelas ferramentas enferrujadas que nos garantem qualquer forma de conforto para o orgulho, aquele degrau que nos separa do mundo para podermos dizer com certeza que não fazemos parte desses números, que não compartilhamos uma fatia gorda de culpa nos rumos duvidosos pelos quais somos obrigados a seguir, como se não houvessem pernas para caminhar sozinho.

Mas de quando em quando a realidade alcança, paramos de sonhar por um segundo e o mundo já está à porta com notícias novas, com um espelho em mãos que por tanto tempo nos recusamos a encarar, e aí o mundo deixa de ser a tela da televisão, a manchete de jornal, e o mundo todo está logo ali refletido diante dos nossos olhos, e a nossa parcela de culpa é ensurdecedora, nossa ignorância de analfabetos, nosso rancor cangaceiro, nossa indiferença marginal, nossa pompa baronesca.

Talvez a terra seja culpada, talvez haja alguma coisa por baixo disso tudo; eu que sempre achei que esse selo original nos houvesse imprimido uma certa intransitividade, uma coisa que resistisse às forças do tempo, deixo a terra vermelha e os pastos do sangue em outra conjugação e me sujo com uma paleta nova, irreconhecínel, inominável; talvez a terra seja forte demais quando está sob nossos pés, talvez haja alguma força desconhecida que atraia a alma para outras direções, que nos deforme em qualquer sentido, uma gravidade moral que nos agarra e nos arrasta a padrões cada vez mais baixos, a planícies culturais cujos limites a imaginação não alcança, mas que estão perigosamente fendidas de abismos inimaginavelmente profundos.

Hoje eu sei que o nosso baú é pequeno, que a vida toda é escolher as coisas das quais estamos dispostos a abrir mão, que o nosso inventário é condicionado mas que as regras que seguimos estão camufladas sob uma inocência fantástica e que a liberdade também está por vezes escondida em trajes de inevitabilidade, com medo de dizer em voz alta que decidimos abrir mão de partes importantes de nossas vidas por razões que talvez sejam até justificáveis, mas não facilmente compreensíveis.

Eu falo muito sobre o tempo e sobre a terra, e cada vez que eu descubro uma peça nova dentro do meu baú eu entendo porque há um gosto amargo no fundo da garganta, porque há borboletas no meu estômago; contar histórias é uma maneira de aprender, e só através de tudo isso eu começo a ver por trás de todas as camuflagens da determinação e do livre-arbítrio, entender os efeitos da terra sobre o espírito, o efeito das ações nas pessoas, das pessoas nos sentimentos,
do mundo sobre mim.

E tudo isso talvez seja uma forma de pedir desculpas a mim mesmo, e falando em voz alta talvez outras pessoas me desculpem também.

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