30 janeiro 2009

O fundo da gaveta #5 (ou Cigarros)

Quando escreveram-me dizendo que estava mal afundei as mãos nos bolsos tateando por um isqueiro; não, não há cigarros, nunca houveram cigarros entre nós, e talvez fosse isso que eu alcançasse quase que inconscientemente: uma ausência, prender uma ausência entre os dedos como garantia de que não ficará mais nada depois que a curiosidade cessar, que não restará saudade, que não haverá fraqueza, que os cigarros serão só meus, meu pedaço amputado de lembrança que não pode ser levado embora.

Ríamos nas madrugadas, escorregando no chão encerado com meias brancas encardidas, bebíamos; os livros deixados no tapete eram rastros dos acessos repentinos da imaginação, folhas de orelhas ensebadas, músicas que nunca escutávamos por completo, a geladeira vazia, a tinta nos sofás; dividíamos a casa e o silêncio sem acordo, sem precisar explicar nada um ao outro, dividíamos tudo, havia esperança de que não há egoísmo entre irmãos, mas não haviam cigarros.

Esperavam alguma coisa, um sopro de solidariedade que justificasse qualquer investida, mas isso eu já não podia oferecer, embora ainda houvesse um querer saber, um estar à frente que não passaria sem uma pergunta de dentes cerrados, de mãos e bolsos e sussurros; sobrou muita curiosidade, a fome incomoda o orgulho que quer dizer que voltamos a rir, que entendemos a piada e estamos preparados pra continuar com a brincadeira, mas há também um vazio de perguntas de olhos baixos, de curiosidade que não se importa.

Éramos estranhos à rua, flores de estufa, contávamos as horas pelos seriados da TV, perdíamos muito tempo com o sono, com a lentidão das manhãs, com lembranças de mulheres distantes; mas sempre houve o que dizer, mesmo quando o silêncio inundava as poltronas sempre houve o que dizer, só não havia necessidade: ríamos com o silêncio.

Conheço pessoas demasiadamente boas, irritantemente virtuosas, pessoas que sempre me apontam uma saída mesmo quando todas as portas se recusaram a abrir, que prescrevem medicamentos mesmo quando o coração já não bate mais; amo suas virtudes, odeio sua compaixão, sua pena, sua solução ingênua para mais uma primavera dos tempos, pessoas que nunca precisaram de cigarros e que exigem que eu me livre de um isqueiro.

Talvez no fundo o problema fosse compartilhar de um mesmo apetite e saciá-lo de maneira completamente diferente, fosse o que fosse, tudo acaba com uma mulher; hoje ainda há o silêncio, mas há também a distância, hoje não há mais o que ser dito, o silêncio é uma necessidade, não dividimos mais uma casa, não compartilhamos mais o sangue, as manhãs tornaram-se breves e também breve é o tempo que essa lembrança passa desperta.

No meu bolso eu carrego um isqueiro, mas não há cigarros: essa é a ausência que eu guardei pra mim.

Um comentário:

Anônimo disse...

os rastros e acessos de imaginação continuam,
só que mancos