24 abril 2009

Corpos

"Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se luta com um inimigo externo, mas com o próprio organismo. Mesmo agora, apesar do gim, a dor surda do ventre tornava impossível dois pensamentos consecutivos. E é o mesmo em todas as situações aparentemente heróicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo incha e se infla até ocupar todo o universo, e mesmo quando não nos paralisa o medo, nem gritamos de dor, a vida é uma luta, minuto a minuto, contra a fome, a insônia, contra uma dor de estômago ou de dentes."

1984, George Orwell.

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"Após os primeiros cinquenta degraus da escada, não consigo mais manter o fôlego. Meus pés flutuam atrás de mim. Meu coração bate contra as minhas costelas, pulando dentro do meu peito. Minha boca e minha língua estão pesadas e ressecadas.

Por volta do sexagésimo andar, o suor rola da minha camisa até os joelhos. Meus pulmões parecem uma meia de náilon esticada e prestes a rasgar. Por dentro. Uma ruptura. Parecendo um pneu antes de estourar, é assim que meus pulmões estão. O cheiro que você sente quando o aquecedor elétrico ou o secador de cabelo queima, é assim que minha orelha está quente.

Se o seu corpo é o seu templo, você não pode deixar de fazer a manutenção. Se o seu corpo é um templo, o meu estava em ruínas.

Por volta do octagésimo andar, minha bexiga parece um ovo alojado na minha bacia. Quando você retira um invólucro de plástico de um alimento aquecido no microondas e o vapor queima os seus dedos, é assim que a minha respiração está quente.

Por volta do nonagésimo andar, qualquer pensamento é uma epifania.
Paradigmas dissolvem-se por todos os lados.
Tudo que é comum se torna uma metáfora poderosa.

Por volta do centésimo andar, tudo se torna claro. O universo inteiro, e não são só as endorfinas falando. Passando do centésimo andar, você entra em um estado místico.

Por volta do centésimo quinto andar você não acredita como pode ser escravo desse corpo, desse bebezão. Você precisa alimentá-lo, colocá-lo na cama e levá-lo ao banheiro. Você acha incrível não termos inventado algo melhor. Algo menos dependente. Que não consuma tanto tempo.

É por volta do centésimo décimo andar que você percebe que se não está no vídeo, ou melhor, ao vivo, via satélite, diante de todo mundo, você não existe.

Você é aquela árvore caindo na floresta para a qual todos estão pouco se fodendo.

Tudo está acelerado exceto eu e o meu corpo suado, com seus movimentos intestinais e cheio de pêlos. Minhas verrugas e unhas do pé amareladas. E percebo que estou preso no meu corpo, e ele já está caindo aos pedaços. Minha espinha dorsal parece que está sendo martelada com ferro quente. Meus braços, finos e molhados, de cada lado do meu corpo.

É por volta do centésimo vigésimo andar que você precisa rir. Você vai perder mesmo. O seu corpo. Você já o está perdendo. É hora de apostar tudo."

O sobrevivente, Chuck Palahniuk.

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"Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode - por um descuido - esvair-se por meu
pulso
aberto

Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se

meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê

Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai

corpo que se pára de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre"


Poema Sujo, Ferreira Gullar.

Um comentário:

.may disse...

Pelo visto vc desistiu msm da "Idéia Fixa", ou isso é apenas um aperitivo?

Mas ainda há questões sobre o corpo, como todas as coisas que deram "erradas" qdo foram concebidas; como toda veste que cobre uma alma perdida; como toda morte que só vem de dentro pra fora; como toda dor que não se dá pelo próprio corpo...