24 abril 2009

O fundo da gaveta #6 ( ou Primeiras impressões)

O cheiro me nauseia; domésticas desfilando Channel número 5 enquanto fritam peixe no fogão; não creio nessa inocência, na despreocupação dos culpados, no andar da menina que finge não saber, em nós que fingimos não olhar, em Deus que finge não punir, no diabo que finge não amar; e o cheiro, esse cheiro que fica embaixo das unhas quando elas sobem a calcinha, esse cheiro que fica nas fivelas e nos sapatos depois do sangue derramado, dedos magoados que esfolamos sobre a pia, e o cheiro, o maldito cheiro nos persegue.

Essa gritaria é o nosso jeito de ficar em silêncio; Sonata ao Lunar n'um rádio a pilhas, "FM xxx,5 agradece a sua audiência e garante seu assento cativo na boca do inferno", essa voz metálica que sai dos canos, palavras de desaprovação, renúncia, desespero, a doce mentira que se deita vadia conosco, saída da boca dos nossos próprios pais; entoando o Soneto de Fidelidade pra foder essa noite, eu te amo no banco de trás dessa carro mas pelo-amor-de-Deus não me pergunte.

É áspero; pregos roçando nossos cotovelos no meio do sono, unhas por fazer arranhando coxas de pré-adolescentes morrendo de tesão, e a vermelhidão que fica? E o sangue que escorre e suja o algodão? Água oxigenada e band-aid, todos placebos que nos empurram a esperança goela abaixo, até ficarmos satisfeitos, empanturrados como porcos prontos pro abate, de olhos fechados e felizes sem perceber o machado a abrir nossos mundinhos, nossa alma líquida borrinfando forte e ainda quente, coisas que remendamos com a suavidade das flores sobre tampos de pedra, como se o inferno não estivesse cheio de pessoas com boas intenções.

É salgado; lambemos o suor dos nossos amores com desejo, e nos alimentamos dos seus pecados, engolimos perfumes e cabelos dos seus amantes sem desconfiança, sem destilar os sabores da culpa e do arrependimento; somos gado de engorda, presos nesses corpos inúteis, antiquados, que muito me surpreendem por ainda não terem sido substituídos por alguma coisa mais durável, mais confiável; é gosto de ferrugem que a carne nos traz, ferrugem desse sangue que seca nas veias dos mortos e que esfria dentro dos vivos, sangue que carrega gordas gotas de gordura até o meu coração, que infla, infla, infla, até não caber nesse peito, com mais carne do que amor.

É um mundo de cegos; nos corredores do Louvre ninguém olha para o chão; e a beleza? Trinta quilos de anorexia, cinco sessões de toxinas na testa, nos olhos, na boca; fomos domesticados por espelhos, já sem brilho, já sem força, já sem coisa nenhuma a oferecer, olhos fundos em suas órbitas já sem gravidade, sem espaço, sem tempo, sem futuro e sem presente; o tempo passa mas não vemos as horas, e o sol encoberto por uma cortina de fumaça, meio-dia meia-noite, tanto faz; o tempo passa e não vemos as horas.

Nenhum comentário: