30 abril 2009

Memórias inventadas #2 (ou A infância que não tive)

Tenho sonhos de um outro tempo, de uma outra cidade, tenho sonhos de uma outra vida que já foi minha; o hospital ainda está lá, as sirenes, o topo das ávores, a mata selvagem sem concreto e sem nada que brotava vizinha às janelas, que se estendia por cima dos muros e por baixo do asfalto. Me sinto muito só nesse sonho, as coisas todas grandes demais, as pessoas todas pequenas demais, os cachorrinhos com um palmo de altura a lamberem-me os dedos dos pés, a garagem de casa com o portão aberto para a rua, o hospital, as coisas todas como deveriam ser, mas ainda assim outras.

Lembro da minha infância, mas talvez me lembre mais daquela que não tive, tanto faz; carregamos o selo de um tempo e de um lugar que recaiu sobre nós - e que não somos nós, nunca o fomos -, escapamos de tantas desgraças advindas do passado, da fome dos nossos pais, da pobreza, das surras de galhos de marmelo, das filas na padaria, do sal na ferida, das bocas de sino, e o que sobra é uma infância entre tantas outras que deixamos de ter, que por bem ou por mal nos conduziu aos vícios, à moderação, à virtude e à desgraça.

Lembro das histórias de meu avô, da kombi branca de portas corridas, do motor afogado, me lembro do pente fino e das tinturas de cabelo, me lembro de amor e de carinho, me lembro das aventuras à meia-luz, começo da noite e a bicicleta à toda, o vento no rosto como fosse pássaro, me lembro do medo do escuro, a volta apressada pra casa, o corredor que não visitava sem companhia, me lembro de tudo isso sem certeza nenhuma, me lembro como que de uma ausência, como quem descreve um quadro que não se vê há muito e que já não se sabe se realmente tocamos com os dedos ou apenas com a memória, como quem não consegue mais discernir uma foto de uma paisagem, um personagem de um amigo.

Hoje eu tenho uma infância que não é minha caminhando ao lado daquela que tive, como se esta não fosse boa ou ruim o suficiente, como se crescer uma vez só fosse pouco, e talvez seja egoísmo se apropriar do passado dos outros tão levianamente, como criança que não deixa intocada qualquer coisa que fique ao seu alcance, como que ainda na mais besta infância aprendendo a pedir por favor.

Me desculpem de novo: por favor?

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