24 abril 2009

Memórias inventadas (ou O pequeno M.)

O pequeno M. ganhou um canivete aos 11 anos, suiço ao que parecia, gasto, cego, velho como as mãos do avô que o colocaram sob o travesseiro como fosse doce, como fosse fada guerreira; o pequeno M. gostava das cores, do vermelho rosado, da prata azulada, do dourado amarelo, o pequeno M. gostava das pinças, gostava das chaves, mas sobretudo, o pequeno M. gostava das lâminas.

O pequeno M. era feliz, jogava bola na terra vermelha, gostava de ver as ambulâncias chegando no hospital de sirenes ligadas - assistia a tudo de cima de uma árvore que, segundo lhe haviam dito, tinha plantado com as próprias mãos. M. não sabia empinar pipas, mas M. sempre fora bom com a navalha.

O pequeno M. usou um estilete pela primeira vez aos 9, trabalho de escola, cartolina e isopor, mãe na cozinha, lâmina na mesa; M. esticou a navalha tanto quanto pôde, cheiro de pipoca na cozinha, o som da pipoca dentro das mãos enquanto o metal estralava até não mais poder, até estar preso por poucos centímetros de plástico.

O pequeno M. não sabia lutar, mas gostava de Cavaleiros; M. sonhava com armaduras, sonhava com raios e explosões, mas M. era tímido, apertava sempre as mãos como fosse brigão, como fosse o encrenqueiro da escola.

O canivete tinha uma tesoura, tinha uma lixa, tinha uma lâmina, lâmina dourada pela idade, salpicada de cobre, o pequeno M. e seu pequeno canivete, o pequeno M. e suas pequenas mãos apertadas em torno do canivete, em torno da lâmina cega, mas o pequeno M. tinha mãos fortes, mãos de garoto brigão, então ele apertava a navalha até sentir o suor das palmas ficar viscoso, até o canivete vermelho se perder nas suas mãos vermelhas.

O pequeno M. não sabia lutar, mas tinha mãos de garoto brigão, era por isso que o pequeno M. nunca se metia em confusão, nunca fora para a sala do diretor, nunca puxou cabelos; o pequeno M. via todas aquelas crianças nervosas, todas de mãos cerradas a bater sobre a mesa, a bater nos colegas, e o pequeno M. sempre pensava que não se deve gritar com uma criança machucada, que aquilo devia estar doendo bastante, que mão de garoto brigão é só mão de criança dodói.

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